2º Trimestre | 2020

Quando entramos no Museu Felícia Leirner e Auditório Claudio Santoro, ainda na área de estacionamento, somos recepcionados por um conjunto de esculturas de cimento armado em ferro, pintadas de branco, e distribuídas em um morro verde, que culmina na obra “Horizonte” e em uma ampla vista para a cadeia de morros que invade o sul de Minas Gerais, com um perfil privilegiado da famosa Pedra do Baú. Esse conjunto de 18 obras foi nomeado pela artista como “Recortes da Paisagem” e compõe uma das últimas fases de seu riquíssimo acervo, tendo sido construídas in loco, até meados dos anos 1980 e, portanto, em perfeito “diálogo” com a paisagem natural do entorno. Ao decorrer da visita, o público conhece outras esculturas criadas com a mesma técnica em diversos tamanhos e conceitos, compondo outras fases da artista, além de obras em outros dois diferentes materiais: granito e bronze.

Na presente edição do Notícias do Acervo trataremos especificamente sobre as obras de cimento armado em ferro que compõem o Museu Felícia Leirner. Vale destacar que a técnica está presente em 40 das 85 obras da artista que permanecem expostas no museu e que foram por ela posicionadas quando se deu a concepção dos espaços. 

Ao recorrermos à história de vida de Felícia Leirner, descobrimos que ao chegar a Campos do Jordão para definitivamente estabelecer morada, a artista deu continuidade aos seus processos artísticos, viabilizando a escultura de uma forma diferente do anterior. Quando em São Paulo, ela empenhou-se na utilização do bronze como matéria prima dos seus principais trabalhos, mas no interior do estado a técnica tornou-se praticamente inviável, sem a existência de ateliês para fundição e com as dificuldades que o transporte, à época, envolviam. Nessa cidade, portanto, o material adotado pela artista foi o cimento. Embora Felícia Leirner tenha se iniciado nas Artes Visuais um pouco tardiamente, aos 44 anos, ela já apresentava à época, um conhecimento amplo sobre este universo. A técnica escolhida para estruturar as suas obras, então, nos aponta a sua genialidade como escultora: Felícia foi capaz de inovar a sua própria técnica e poética, driblando barreiras materiais, sem perder a essência, mas explorando novo estilo e formas; buscando outros recursos, aprimorando a técnica e expandindo, assim, a sua poética artística.

Claudemir Ignácio – restaurador responsável pela manutenção e conservação da coleção de esculturas do Museu Felícia Leirner – lembra que a técnica utilizada pela artista para estruturar suas obras de cimento se assemelha muito à técnica denominada “Calfitice”, e que diz respeito a um método muito usado em construções sustentáveis, onde cal, fibras, terra e cimento compõem a edificação (Calcifite, do espanhol = Cal + Fibras + Tierra + Cemento). A artista lançou mão, ainda, da técnica de “espirais” em algumas de suas esculturas, como Habitáculos V e O Mistério, buscando maior estabilidade e firmeza para essas grandes estruturas em cimento. Assim, os processos adotados atualmente em relação à conservação e restauração desse conjunto de esculturas, respeita e utiliza materiais compatíveis à técnica original, buscando durabilidade nas interferências de recuperação e estabilidade na conservação das peças.

No tocante ao processo permanente de conservação dessas obras criadas em cimento a partir de técnicas específicas, é importante mencionar o trabalho continuado dos profissionais envolvidos em cada um dos processos de manutenção e recuperação. Embora as esculturas tenham sido muito bem estruturadas, a ação do tempo e das intempéries – lembrando que a coleção permanece exposta a céu aberto e, portanto, submetida à variação climática, umidade e outras interferências diretas – provoca, no interior das obras, a oxidação dos materiais. Por esse motivo é que se faz necessário o acompanhamento diário da coleção por profissionais preparados e orientados para lidar com a técnica e suas derivações ou problemas decorrentes. Assim, o acervo do Museu Felícia Leirner conta com o acompanhamento diário pela estagiária da área de Acervo, que monitora cada uma das obras, apontando desde qualquer alteração de cores na cobertura das peças até a identificação de possíveis rachaduras; e, também, com visitas periódicas da equipe do Escritório Julio Moraes de manutenção e restauro, responsável por toda e qualquer interferência corretiva, orientação específica e cuidado técnicos com a coleção.

Para concluir, é importante destacarmos que a genialidade da artista Felícia Leirner perpassa tanto o campo poético de sua obra, quanto a materialização de suas ideias. Ao trabalhar a concepção de suas esculturas em sintonia com a técnica construtiva, Felícia Leirner apresenta uma obra ao mesmo tempo simples, tecnicamente, e complexa, estrutural e subjetivamente; sempre equilibrada com o meio que a abriga e passível de ações externas. Em termos de conservação, portanto, é mister respeitarmos os processos criativos da artista, que compõem em grande medida sua poética e estética, mantendo sua originalidade viva por meio de sua coleção mais significativa e numerosa, a do Museu Felícia Leirner. E se você ainda não conhece esse tesouro, convidamos a visitar o museu e a desfrutar de uma coleção extremamente bem conservada, onde a alma da artista se revela em formas e concepções únicas e perenes.

REFERÊNCIAS

– MORAIS, FREDERICO. Felícia Leirner: a arte como missão. Campos do Jordão: Museu Felícia Leirner, 1991.

– Plano de Manutenção e Conservação do Acervo do Museu Felícia Leirner e Plano Diretor do Museu Felícia Leirner e Auditório Claudio Santoro.