1º Trimestre | 2020
Este ano a obra “O Centenário”, de Felícia Leirner, completa cinco anos de cuidados desde que a ACAM Portinari promoveu o seu restauro, em parceria com a Prefeitura Municipal de Campos do Jordão. A escultura, localizada na praça Nossa Senhora da Saúde, no Bairro do Jaguaribe, foi doada pela artista ao município por ocasião da comemoração do primeiro centenário da cidade e, entre 2014 e 2015, recebeu cuidados de restauro da equipe de conservadores e restauradores do escritório Julio Moraes.
Nesta edição do Notícias de Acervo, os interessados poderão compreender um pouco mais da poética da Felícia Leirner, ao relacionarmos a obra doada para Campos do Jordão e os estudos realizados sobre a vida e a obra da artista.
A partir dos escritos do crítico de arte Frederico Moraes podemos identificar o quão profunda foi a integração das esculturas de Felícia Leirner com Campos do Jordão, local escolhido para ser a morada da artista após o falecimento de seu esposo, em 1962. Seu sentimento de pertencimento e encantamento com a fauna e flora locais é sutilmente perceptível em sua poética e evidentemente exposto em um de seus depoimentos:
¨Uma escultura é como uma pedra, uma árvore. Elas têm expressão, são bonitas em si, vivem ao ar livre. Tudo isso é forma: a pedra, a árvore, a montanha. E a escultura é uma forma que também tem de ficar ao ar livre para estar completa (…) Só Deus e eu conhecemos as muitas atmosferas, desde a madrugada até a noite, que envolvem as minhas esculturas em Campos do Jordão¨.
A partir dessa afirmação, ao mesmo tempo tão poética e tão esclarecedora, podemos estabelecer uma interpretação ainda mais aprofundada acerca da percepção da artista sobre as suas próprias criações estéticas. Em suas palavras, as esculturas são comparadas às criações e às formas naturais e, como elas, só estariam verdadeiramente “completas” se livres na natureza, assim como as suas demais formas: pedras, árvores e montanhas. Ainda, no papel de criadora, faz menção as muitas atmosferas vivenciadas pelas suas obras graças à possibilidade de exposição ao ar livre, em meio à natureza. Tal afirmação nos leva a compreender a importância do entorno das esculturas para a fruição imaginada pela artista, que parece ter elegido a paisagem jordanense como ambiente ideal para essa experiência estética.
Vale destacar, ainda, outra evidência de sua relação afetiva com o município, quando debruçado sobre sua produção artística, o estudioso Frederico Moraes afirma que ¨[…] Sua escultura renasceu, ganhou ímpeto novo, monumentalizou-se para dialogar com a natureza exuberante de lá […]¨. Para o crítico, a obra de Felícia Leirner teria sido tão fortemente influenciada pela paisagem local, que ganhara novas dimensões e expressões advindas desse contato. Ao reconhecer, por meio de suas declarações, tal paixão pela natureza local e pela própria cidade de Campos do Jordão é que se admite uma ligação muito íntima entre a arte produzida por Felícia e o município que escolhera como sua morada, fazendo com que o crítico a considere a grande figura da arte de Campos do Jordão, embora não tenha nascido no município.
A obra “O Centenário”, portanto, embora não localizada junto ao restante da coleção, parece congregar elementos caros à produção artística de Felícia e a sua poética, estando exposta ao ar livre, dialogando com a paisagem do entorno e sendo ofertada ao município como homenagem ao seu aniversário de 100 anos, materializando todo o cuidado e a atenção de Felícia por Campos do Jordão. Vale destacar, ainda, que a relação entre a escultura e os munícipes parece ter ganhado contornos parecidos à relação estabelecida entre as pessoas e as paisagens locais. O local é atualmente reconhecido como ponto de socialização entre jovens e senhores da região, que usufruem de sua ilustre presença sem que este seja o mote do seu encontro. Assim, tal qual as montanhas, as araucárias ou a neblina – tão típicas da cidade -, a escultura se configura como mais um elemento local, fazendo parte da vida cotidiana sem agredir a paisagem natural, mas compondo com ela o legítimo cenário jordanense.
Lembramos que, desde a comemoração de 141 anos de Campos do Jordão, a Associação Cultural de Apoio ao Museu Casa de Portinari segue acompanhando e monitorando o estado de conservação da obra ¨O Centenário¨ com a mesma frequência que a coleção do Museu, além de realizar as intervenções necessárias para que ela permaneça estável e possa ser contemplada por moradores e turistas que a visitam. Para concluir, destacamos a importância da preservação de nosso patrimônio, além da necessidade de nos aprofundarmos em sua interpretação, como forma de valorizarmos as nossas próprias construções e reconhecermos as nossas especificidades. E se você ficou curioso para entender um pouco mais sobre o restauro dessa importante obra, leia o boletim produzido ao longo do segundo trimestre de 2015 que traz, ainda, imagens da escultura antes e depois das intervenções.
Referência:
Morais, Frederico, Felícia Leirner: a arte como missão / Frederico Moraes