3º Trimestre
Em nosso último Boletim de Acervo tratamos sobre a relação da técnica empregada por Felícia Leirner na edificação das esculturas de cimento que compõem o acervo com a própria poética de sua trajetória artística. Neste Boletim vamos adentrar um pouco mais nesse tema, nos detendo numa série de quatro esculturas denominadas “Habitáculos”.
Imagens típicas de Campos do Jordão: uma natureza exuberante, cheia de contrastes de cores e espécies nativas, com fragmentos de florestas de araucárias. Assim, não é de se admirar que a escultora Felícia Leirner tivesse escolhido essa cidade para morar. A natureza lhe trazia memórias afetivas e a fascinava. O espaço então escolhido para abrigar as suas esculturas era, aos seus olhos, um cenário naturalmente composto de muita poesia e beleza.
Ao caminhar atualmente pelas alamedas do Museu Felícia Leirner, seguindo o percurso idealizado pela própria artista, o visitante encontrará em uma área cercada de muito verde, a série de esculturas “Habitáculos”. Composta por quatro esculturas, foi produzida pela artista entre os anos de 1966 e 1967, manifestando uma arte – técnica e formalmente – consciente ao mostrar-se totalmente integrada à paisagem, de forma orgânica e natural.
As obras que compõem essa série são “esculturas habitáveis”, como se fossem lugares, esconderijos, refúgios, moradas autênticas. Nessas experiências, a artista se enveredou em obras de características arquitetônicas, atraentes à vista, construindo uma arte permanente, aconchegante e maternal, como se estivessem prontas para serem habitadas. Cercadas de árvores nativas e plantas típicas da região, são estruturadas em ferro, revestidas de cimento e pintadas em branco, o que permite a alta capitação da luz do sol. Apresentando recortes e entradas que nos lembram portas e janelas, as esculturas parecem “pedir” uma interação com tudo que está ao seu redor, tornando-se um convite irrecusável que as transforma, algumas vezes, em abrigos para os animais da região – uma união perfeita entre natureza e arte, como deseja a artista.
Por estarem expostas diretamente às condições climáticas, em área externa e sem abrigo, essas esculturas enfrentam diariamente as consequências de ventos fortes e tempestades – que ora produzem raios, ora desencadeiam a queda de galhos de árvores -, além de variações aparentemente menos drásticas, como neblina, incidência de sol e sujidades advindas do contato com pequenos animais e insetos. Há que se somar a esta condição o fato já mencionado de que a poética e a forma dessas obras se traduzem em verdadeiros convites à interação, muitas vezes aceitos por pequenos animais silvestres e, outras, pelos próprios visitantes.
Ainda, que por se tratar de um material menos durável que o bronze, estando mais sujeito aos efeitos dessas condições expositivas, a atenção e os cuidados com a série devem ser invariavelmente permanentes e ininterruptos. Assim, conciliando os trabalhos da esquipe interna e dos especialistas do escritório de manutenção e restauro contratado, os cuidados diários incluem técnicas e materiais apropriados. A execução, por sua vez, deve mostrar-se minuciosa, sem descuidar dos aspectos inerentes à criação e à produção artística. Nesse sentido, é importante destacarmos a especificidade desses profissionais que, mesclando os conhecimentos técnicos a um olhar observador e sensível, emitem análises detalhadas que consideram os formatos de interação do público e priorizam medidas de manutenção preventiva, diminuindo as chances de interferências mais profundas com restauros posteriores à degradação.
Por fim, além de mais uma vez trazermos luz à produção simbólica da artista Felícia Leirner, destacando a poética que harmoniza tão sensivelmente com a arte e a natureza, este Boletim quer mostrar a importância das várias equipes nos procedimentos de cuidado com a coleção, evidenciando seu caráter transversal.
Como vimos, nenhum conhecimento técnico de conservação deve prescindir do entendimento das dimensões poéticas e contextuais da criação das obras a que se destina. Para o trabalho responsável na manutenção de coleções, conhecer a estrutura e os elementos que compõem uma única peça é tão importante quanto conhecer a poética manifestada pelo conjunto de toda produção daquele artista, o histórico de sua exposição e os formatos de interação com o público. Todos esses aprendizados articulados poderão apontar com mais assertividade para uma série de elementos e condições estruturantes que, ao final, deverão colaborar para cumprimento das missões de conservação e comunicação adequada do patrimônio.
Referência:
– MORAIS, FREDERICO. Felícia Leirner: a arte como missão. Campos do Jordão: Museu Felícia Leirner, 1991.