3ºQUADRIMESTRE
As diferentes concepções de “criação” presentes no Museu Felícia Leirner
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“A minha inspiração nasceu aqui. E, através dela, me comunico com todo o mundo.”
(LEIRNER, Felícia). Jornal Folha de S. Paulo. 25 de abril de 1971.
Ao longo de sua trajetória artística, Felícia Leirner produziu diversas obras relacionadas ao mundo feminino, mais especificamente ao mundo materno. É notório que essa temática está ligada intrinsicamente à própria maturidade em sua carreira profissional. Como vemos na fotografia feita por Alice Brill (figura 1), no ateliê da artista.
No retrato, vemos a artista ao lado de sua criação. Felícia a envolve em um abraço afetuoso, como se aquela obra tivesse nascido de dentro dela.Essa relação quase maternal com suas obras é bastante evidente mesmo com o passar dos anos. O crítico de arte Mario Pedrosa, em curadoria sobre a sala especial da artista, na VIII Bienal de São Paulo, colocou:
“A sala atual de 1965 é a chegada de uma viagem de vinte anos. Felícia iniciou-se como escultora em 1945, quando sua direta tarefa materna estava por assim dizer cumprida, e as crianças cresciam. A ansiedade por si mesma, enfim extravasa à procura de expressão: a artista nascia dentro dela […] as figuras de mulher, da mãe, sobretudo a maternidade no fundo é nela tema tão importante. (PEDROSA, M. 1965) ”.
O crítico, nesse texto curatorial, faz uma síntese sobre o trabalho produzido pela artista até aquele momento, e ressalta o fato da criação, ou melhor, do nascimento da artista dentro dela, que advém do fim de um ciclo, o fim da criação materna. Assim, vamos pontuar sobre as obras e as mediações oferecidas pelo Museu que exemplificam esses aspectos da criação. No Museu Felícia Leirner, há duas obras intituladas “Maternidade”, além de outras que exploram as relações afetivas entre pais e filhos, como “Mãe e Filha”, “Casal com Filho”, “Figura Bíblica” e “Nascimento”. Há, ainda, em um dos semicírculos do espaço, esculturas (“Sakia”, “Agar” e “Meetabel”) que contam histórias da Torá, onde as figuras presentes são alegorias do processo materno[1]. Todas essas obras, exceto a figura bíblica, fazem parte da Fase Figurativa da artista. Uma fase marcada pela exploração da matéria e da forma, onde figuras humanas surgem, às vezes, com uma estética classicizante que remete à tradição de Maillol². Dessas obras, apresentamos um dos pontos de vista sobre a criação, que é a relação materna. Na obra “Maternidade” (1952), logo na entrada do Museu, vemos essa presença clássica do artista francês. O entalhe no mármore traz detalhes de uma maternidade sensível, onde a mãe segura carinhosamente o seu bebê. Em outras formas humanas, conforme aponta o crítico José Geraldo Vieira, vemos estruturas antropomórficas que nos remetem às produções de um expressionismo parecido com obras de Germaine Richier e Giacometti. Figuras andrógenas, com pouquíssimos detalhes nas feições de seus rostos, onde só conseguimos distinguir os sexos por meio da leve elevação dos seios. Dessas figuras esqueléticas, temos a obra “A Maternidade” (1955-1957). Nessa, já conseguimos observar a passagem da artista para a abstração. A paixão e o romantismo associados ao processo de ser mãe parecem ausentes. A figura materna é representada de modo intenso, como se estivesse sendo “absorvida” pelas duas crianças agarradas aos seus seios. Seus braços estendidos sugerem uma entrega quase inevitável a essa “tarefa materna”, uma representação evocada por Pedrosa. Mas o “criar” vai muito além disso. Por isso, o artigo da pesquisadora Carolina Souza[2], publicado em 2021, é caro para essa discussão. O texto discute aspectos dessa relação mútua entre o processo da criação materna e o processo criativo, presentes na obra do psicanalista inglês Winnicott. A autora, inclusive, analisou essas obras que elencamos no começo do texto. Segundo o artigo, a necessidade da criação chega a ser vital, onde nós só conseguimos descobrir a nós mesmos quando estamos em um processo criativo. Isso não sugere que esse processo seja a criação de uma obra de arte, de alguma invenção ou até mesmo de ser mãe. Pelo contrário, ser criativo é quando estamos preparando, por exemplo, uma refeição com ingredientes que nunca utilizamos, ou quando mudamos o traje que estamos acostumados a vestir, etc.
[1] Veja o “Você sabia” de agosto de 2024, publicado no Instagram do Museu Felícia Leirner que fala sobre essas três esculturas, com maior profundidade.
[2] DE SOUZA, CAROLINA; DOS SANTOS, MANOEL ANTÔNIO. Figurações da Relação Mãe-Bebê nas Esculturas de Felícia Leirner: Um Olhar Winnicottiano. SUBJETIVIDADES, v. 21, p. 1-13, 2021.
“Por meio dessa via – por exemplo, o cuidado materno – o artista pode se conectar com o mistério da criação. Ser mãe também é criar, procriar, recriar, dar à luz uma vida nova, que tem o condão de tornar o mundo mais rico e interessante.” (SOUZA, CAROLINA. p.3; 2021). Em nossas visitas e oficinas, recebemos pessoas das mais diversas idades, gêneros, classes sociais, nacionalidades etc. Quando recebemos o público infantil, notamos esse percurso do processo “amadurecimento” da criança. Da possibilidade em que as mesmas têm de projetar ideias para interpretarem as obras expostas e visualizarem aquilo que não está visível, o que permeia entre o real, o lúdico e o onírico. Da mesma forma, isso ocorre quando as oficinas são aplicadas, essa projeção e construção rápida de ideias, do raciocínio lógico e o estímulo cognitivo para romper aquele desafio proposto. Essa relação dialética apontada pelo psicanalista considera o papel que a arte pode desenvolver no ser humano. A descoberta de seus impulsos criativos é o que condiciona a vivacidade, de conseguir enxergar em si e no que está ao seu redor, e poder caminhar sobre essa ponte entre o inconsciente e a realidade.
Referências bibliográficas
Acervo do Museu Felícia Leirner. Disponível em: <https://www.museufelicialeirner.org.br/acervo/esculturas/>
BERNARDES, Lourdes. A artista que chegou e o educador que renovou. São Paulo: Jornal Folha de São Paulo. 25 de abril de 1971. Arquivo Wanda Svevo. São Paulo.
DE SOUZA, CAROLINA; DOS SANTOS, MANOEL ANTÔNIO. Figurações da Relação Mãe-Bebê nas Esculturas de Felícia Leirner: Um Olhar Winnicottiano. SUBJETIVIDADES, v. 21, p. 1-13, 2021.
MUSEU FELÍCIA LEIRNER E AUDITÓRIO CLAUDIO SANTORO. Programa Educativo e Cultural. ACAM Portinari: Campos do Jordão, 2021.
MUSEU FELÍCIA LEIRNER E AUDITÓRIO CLAUDIO SANTORO. Plano Museológico. ACAM Portinari: Campos do Jordão, 2021
VIEIRA, José Geraldo. Sobre a retrospectiva de Felícia Leirner na Galeria das Folhas. São Paulo: Revista Habitat, nº54, 1959. Disponível em: < https://pt.scribd.com/document/672095726/Trecho-do-texto-de-Jose-Geraldo-Vieira-para-a-Revista-Habitat-n%C2%BA54-1> VIII Bienal de São Paulo, 1965. Catálogo geral. Fundação Bienal de São Paulo. Disponível em: <https://issuu.com/bienal/docs/name6dc084>
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