2º Trimestre | 2019

O destaque em âmbito artístico na vida de Felícia Leirner foram suas criações escultóricas, que ao longo de sua trajetória contemplaram diferentes fases: figurativa, abstrata, orgânica e as mesclas entre elas, como ocorre na escultura União (pertencente ao acervo do museu). Nela, como em tantas outras, é possível identificar a sugestão de duas figuras humanas entrelaçadas que, porém, também podem ser vistas como formas orgânicas livres e indefinidas, contando, assim, com o repertório do espectador para ganhar interpretação e significado próprios. 

O museu possui 86 obras de Felícia Leirner esculpidas ou moldadas em granito, bronze e cimento branco armado com ferro. Embora, como já dito, sua grande dedicação ficasse depositada na criação das esculturas, Felícia também transitou por outras linguagens artísticas, tendo escrito uma série de textos poéticos e aforismos capazes de reiterar suas inspirações e motivações artísticas. No Museu Felícia Leirner, além de disponibilizados textos e referências sobre a vida dela e a obra ao longo de todo o trajeto de visitação, a intervenção, carinhosamente apelidada de “Pé de Poesias” – uma árvore decorada com uma série de pequenos trechos poéticos da artista -, auxilia o visitante a compreender a forma de pensar o mundo e as inspirações criativas da artista.

O “Notícias de Acervo” deste trimestre apresenta ao leitor algumas relações possíveis entre as duas diferentes formas de expressão de Felícia Leirner – criações escultóricas e textuais – com o intuito de nos aventurarmos na compreensão de sua poética e revelações criativas.

Frederico Morais [1] – crítico de arte e estudioso da vida e obra de Felícia Leirner – revela a preferência da artista pelo uso do barro em seu processo criativo. Segundo o autor, ela dava primazia a prática de suas obras a partir do uso da argila, segundo o que costumava afirmar que “responde a nossa mão, melhor ainda, responde a nossa imaginação” mais do que o próprio desenho. Corroborando com essa afirmação, encontramos um texto poético da artista no qual ela faz referência a este elemento:

“Minha alma, nunca imaginei. Só a inventei e a formei como se fosse barro com que eu faço as esculturas. Eu mando entrar pelos dedos e pelas mãos, pois ela pode se alojar onde a gente quer. Eu a deixo descansar e de novo se abrigar onde ela gosta, basta que ela fique comigo até Deus querer, para me ajudar a fazer meus trabalhos”.

Revela-se no trecho acima, portanto, a relação afetiva e emocional estabelecida pela artista com o elemento barro, compreendido dentro do processo criativo para além de questões técnicas ou formais.

Ao tratarmos de processos criativos não podemos deixar de mencionar, evidentemente, os temas e “inspirações” que conduzem e se revelam no trabalho de cada artista, conferindo-lhe autenticidade. Na coleção de obras presente no museu, o tema da “maternidade” aparece como destaque entre os demais, havendo seis esculturas que a ele fazem referência. Peças criadas em diferentes fases, contemplando variados materiais e técnicas, mas que transitam pela ideia da relação entre mãe e filho(a), revelam a sua preferência pelo tema, apontando a necessidade de uma investigação específica que possa nos auxiliar  na compreensão de sua obra como um todo. Assim, ao estudarmos os seus escritos, encontramos indícios interessantes de sua relação pessoal com a maternidade e com a criação artística:

“Eu sinto a força muito grande da maternidade. Tudo para mim é nascer, amar e criar. Até agora, com muita idade, não pareço ter mudado. Alguma coisa das mulheres bíblicas em mim ficou e eu sinto poder amar, poder sempre criar, através de tudo que pode germinar. Se o amor ainda vier com certeza ao meu espírito se unirá e a minha arte nascerá”.

Há outros temas bastante recorrentes na obra de Felícia Leirner que são capazes de revelar suas paixões, interesses e formas de compreensão do mundo. Animais e famílias aparecem igualmente com bastante frequência em suas obras, demonstrando que as preocupações/inspirações da artista transitaram por assuntos do cotidiano propondo novas formas de olhar o mundo circundante. Há que se destacar, ainda, que o elemento vazado de suas obras – tão presente nas esculturas da fase “Recortes da Paisagem” – surge com a intencionalidade de destaque da natureza do entorno, configurando-se, portanto, como elemento constitutivo da obra e, mais especificamente, de sua poética como um todo. 

Por fim, destacamos que o trabalho dos museus contempla mais do que a preservação do patrimônio quando buscam a compreensão e interpretação do ofício dos artistas à luz dos contextos em que foram criados e divulgados. O aprofundamento da compreensão da vida e poética do artista não deve, porém, ser um limitador na interação dos indivíduos com as obras, mas possibilitar o acesso a um número maior de elementos que possam contribuir com essa relação, permitindo que se estabeleçam conexões e vínculos pautados, ainda e sobretudo, em suas bagagens pessoais. Assim, buscamos dividir com o público informações conhecidas sem, com isso, retirar da obra de arte o seu grande potencial questionador, provocador, crítico e alargador. 

[1] Morais, Frederico, Felícia Leirner: a arte como missão/ Frederico Moraes – Campos do Jordão, SP: Museu Felícia Leirner, 1991, p. 55

Leirner, Felícia, 1904-1996. Poesia brasileira. Guinsburg. J